A legislação brasileira apresenta uma característica paradoxal quando se trata de ordenamento urbano e planejamento territorial. Embora o federalismo permita que municípios tenham poder legislativo sobre assuntos locais, as leis municipais frequentemente são obrigadas a serem mais restritivas e subservientes às leis federais e estaduais, inclusive em temas de interesse particular do município. Um exemplo claro dessa incongruência é o Plano Diretor, um instrumento criado para guiar o desenvolvimento urbano, que em sua forma atual, reflete muito mais um formalismo burocrático do que uma resposta prática às necessidades específicas de cada cidade.
O sistema federativo brasileiro, em teoria, delega competência legislativa para que estados e municípios atuem de forma independente e coordenada. No entanto, na prática, existe uma hierarquia normativa que impõe que leis municipais sigam diretrizes federais e estaduais, frequentemente de forma mais restritiva do que estas. Quando se analisa o Plano Diretor, essa relação de subordinação se revela especialmente problemática: municípios, ainda que tenham o maior entendimento sobre suas necessidades e peculiaridades, encontram-se limitados a replicar dispositivos do Estatuto da Cidade, o qual, por sua vez, tem um caráter generalista.
O Estatuto da Cidade, instituído pela Lei Federal 10.257/2001, estabelece diretrizes gerais de política urbana e impõe requisitos mínimos para os Planos Diretores, determinando que eles devem orientar o desenvolvimento urbano de forma sustentável. No entanto, em muitos casos, os municípios acabam por transcrever os mesmos conceitos do Estatuto em seus Planos Diretores, sem, de fato, desenvolverem abordagens específicas para seu território. Isso gera um documento legislativo com pouca novidade ou contribuição relevante, desperdiçando um potencial de inovação e adaptação local que poderia transformar o ambiente urbano.
O fato de replicar os dispositivos do Estatuto da Cidade cria uma situação em que o Plano Diretor se torna um instrumento de aplicação limitada, com grande parte do conteúdo consistindo em repetições de diretrizes federais, para tratar muito pouco de especificidades locais. Na prática, isso significa que o Plano Diretor, em vez de representar uma legislação viva e em sintonia com as demandas da cidade, se transforma em um documento protocolar, que pouco agrega ao ordenamento urbano.
Essa redundância legislativa torna-se ainda mais incoerente quando se considera que o município, enquanto ente federativo que conhece mais profundamente sua realidade, poderia, e deveria, ter maior liberdade para legislar de forma adaptada ao seu contexto específico. A imposição de diretrizes superiores, que podem ser inadequadas para um determinado município, engessa o planejamento urbano, resultando em leis que são aplicadas por formalidade, e não por sua eficácia prática. Em vez de serem instrumentos dinâmicos de política urbana, os Planos Diretores tornam-se mais um produto da burocracia, sem a capacidade real de promover o desenvolvimento local.
Considerando a redundância dos Planos Diretores, surge uma questão fundamental: não seria mais objetivo que a lei municipal se concentrasse apenas nos aspectos específicos e inovadores, deixando de lado o que já está consolidado na legislação federal? Em outras palavras, os municípios poderiam dedicar os Planos Diretores exclusivamente àquela parte que realmente fazem diferença na realidade local, aproveitando ao máximo o conhecimento específico que possuem sobre suas necessidades e potencialidades.
Ao focar nos aspectos locais, os municípios poderiam transformar o Plano Diretor em um dispositivo mais direto e objetivo, eliminando formalismos que não agregam valor prático. Essa adaptação permitiria que as cidades se apropriassem da legislação urbana, moldando-a para atender aos seus desafios únicos. O resultado seria um planejamento urbano mais eficiente, guiado pela realidade e pelas prioridades do município, em vez de um conjunto de regras limitadoras, criadas para atender a um padrão federal.
A incoerência legislativa que permeia o Plano Diretor no Brasil é um reflexo de uma estrutura federativa que, na prática, inibe a autonomia dos municípios, transformando suas leis locais em extensões de diretrizes gerais. Ao exigir que os municípios repliquem normas federais e estaduais, o sistema limita a capacidade das cidades de desenvolverem políticas urbanas autênticas e adaptadas, desperdiçando, assim, o potencial transformador que o Plano Diretor deveria ter.
Concentrar os Planos Diretores apenas nos dispositivos que realmente definem aspectos locais e relevantes seria um passo em direção a uma legislação urbana mais eficaz e menos burocrática. Este modelo de Plano Diretor enxuto traria autonomia aos municípios, permitindo que legislem de acordo com suas especificidades, sem perder a compatibilidade com os princípios gerais estabelecidos no Estatuto da Cidade. Em última análise, é apenas por meio de uma legislação coerente e alinhada com a realidade local que se pode alcançar um desenvolvimento urbano verdadeiramente sustentável e alinhado às necessidades dos cidadãos.